“Eu escrevo para não matar. E para não morrer”. Essa foi uma das muitas falas marcantes da jornalista Eliane Brum, o grande nome do quarto dia de Bienal Internacional do Livro. A gaúcha arrebatou o público contando muitas das histórias de quem faz “literatura pela boca”, contadas a ela em três décadas de “escutadeira”, como a autora mesma se definiu. (Foto: Divulgação/Secult)
Na ocasião, falou ainda sobre seu passeio pela ficção e o documentário. Para Brum, a imagem permitia explorar aspectos da narrativa que ela não tinha conseguido resolver pelo texto e, por isso, o mergulho no audiovisual, ainda que assuma a palavra escrita como a coluna vertebral de sua obra. A conversa, mediada pelo também jornalista Lira Neto, curador da Bienal e amigo da escritora, foi precedida por longos 50 minutos de autógrafos.
O silêncio produzido por uma plateia atenta às palavras mansas de Brum se opunha absolutamente ao que fora o primeiro dia de visitações escolares da Bienal. Ao longo de toda esta segunda-feira, 17, o Centro de Eventos do Ceará foi preenchido por uma multidão de estudantes. Segundo a organização, mais de 550 escolas – das redes pública, privada e das ONGs – devem trazer cerca de 26 mil estudantes ao longo dos próximos dias de Bienal. Há visitações agendadas inclusive para o feriado de Tiradentes.
O mezanino 1, dedicado à programação infantil, esteve especialmente disputado. Contações de história, vivências circenses e palestras com autores infantis estiveram repletas de crianças e adolescentes. O teatro de bonecos do grupo Ânima contou com uma plateia de mais de 200 crianças. Na apresentação do escritor Tino Freitas, com o espetáculo “Quem quer brincar comigo?”, os pequenos participaram com entusiasmo das brincadeiras. Segundo Tino, sua montagem ajuda na construção da escrita das crianças. Além da riqueza do contato direto com o livro e os autores, a leitura usada como objeto transformador.
Noite Geek
A Sala Elementos presenciou a calorosa “Batalhas Épicas: O Senhor dos Anéis x Game of Thrones”. De uma lado, o escritor e ilustrador Affonso Solano defendia Game of Thrones, e Jurandir Filho, do Cinema com Rapadura, falava por Senhor dos Anéis. Depois de muitas considerações, risadas e disputas, Game of Thrones foi o campeão da batalha.
Logo depois, Affonso Solano ministrou um workshop interativo sobre “Criação dos Mundos” com Jurandir Filho e Raphael PH Santos – também do Cinema com Rapadura – para pessoas que gostam de escrever, que querem criar algo novo ou simplesmente para mentes curiosas e criativas. Na ocasião, foi realizado com o público um exercício de criação de um novo universo. O resultado foi a volta da lendária civilização de Atlântida, em que os habitantes se comunicam agora por telepatia e passam por diversos conflitos com os humanos. “Há duas maneiras de fazer um novo universo: criando um totalmente novo ou acrescentando um novo elemento àqueles em que você já vive”, pontuou Affonso.
Intercâmbio
O dia foi marcado ainda pela estreia da Bienal Fora da Bienal, ação que promove encontros com escritores do Ceará, do Brasil e de vários países, realizados fora do Centro de Eventos do Ceará, espaço que acolhe a maior parte da programação da Bienal.
Na manhã desta segunda-feira, o ator, cantor e escritor Gero Camilo visitou, a Unidade Prisional Irmã Imelda Lima Pontes nesta manhã, em Aquiraz, para um bate-papo com as pessoas em situação de restrição de liberdade. À tarde foi a vez do autor português Valter Hugo Mãe conhecer a Tribo dos Anacé, em Caucaia, sendo recebido pelo jovem índio Climério, filho do Cacique Antônio Ferreira. Cem pessoas acompanharam o debate com os Anacé, que destacaram, principalmente, as dificuldades da comunidade, a luta contra grileiros e posseiros e a ocupação da Funai. Diálogo riquíssimo também sobre origem, culturas, vida comunitária na comunidade Japuara e injustiças históricas cometidas contra os índios.
Mulheres
No Centro de Eventos, estreavam duas programações: o “Letras de mulher, Novas Páginas”, no qual escritoras do Ceará, do Brasil e do mundo conversam sobre a contribuição feminina na literatura; e o VII Encontro dos Agentes de Leitura do Ceará, já tradicional ao longo das Bienais.
A programação teve início com a palestra do consultor e militante do livro e da leitura, José Castilho, e presença do secretário da Cultura do Estado do Ceará, Fabiano dos Santos Piúba; da secretária adjunta da Cultura, Suzete Nunes; da escritora Marina Colasanti; e da coordenadora geral da Bienal, Mileide Flores. Participaram da atividade mais de 100 agentes de leitura provenientes de 32 municípios do Estado. O momento foi de reflexões e muito aprendizado, também com aula da professora Valdenice Barbalho e encerramento com performance do ator Ricardo Guilherme. A programação do encontro continua nesta terça-feira, 18, durante a Bienal.
Marina Colasanti também esteve presente no “Letras de Mulher, Novas Páginas”. Numa conversa com a escritora cearense Ana Miranda, mediada pela professora Vânia Vasconcelos, rememorou Clarice Lispector e seu doloroso processo criativo. A programação deste encontro continua nesta terça-feira com duas relevantes mesas sobre mulheres, africanidades e literatura: a moçambicana Paulina Chiziane e Tânia Lima conversam sobre as mulheres na África e suas representações; e as escritoras brasileiras Conceição Evaristo e Kiusam de Oliveira protagonizam a mesa “Nenhum fogão, todas as estantes: mulheres e escrita afro-brasileira”.
Saberes
Alinhada com a proposta de unir saberes acadêmicos e populares, a programação desta segunda-feira abarcou ainda mesas sobre as academias de letras e, por outro lado, a presença dos mestres e mestras da cultura.
Os jornalismos cultural e literário, além dos processos criativos, entraram na pauta mediada por Lira Neto, curador da Bienal, junto aos também cearenses Izabel Lustosa e Dimas Macedo. “Nos anos 40, por influência dos EUA, o jornalismo perdeu o caráter literário. ‘O prosas e versos’, espaço do Jornal do Brasil acabou. Acabou o local da literatura e de livros no jornal. Você não tem um espaço e uma imprensa cultural. Isso precisa ser reinventado”, pontuou Isabel Lustosa.
Já o membro da Academia Cearense de Letras, Dimas Macedo, falou sobre seu trabalho enquanto crítico literário e sobre seu processo criativo enquanto poeta. “Sou obsessivo com minha forma poética. Depois de 10 anos, termino um poema porque não encontro uma palavra certa. Muitos desse poemas que escrevi viraram melodias”, comentou.
No auditório principal, por sua vez, os mestres e as mestras da cultura, reconhecidos pelo Governo do Estado, dividiram suas experiências com os atentos visitantes e apresentaram seus talentos. Dona Dina e Mestre Pedro Coelho, ambos vaqueiros, fizeram ressoar aboios que, junto com a viola e as cantorias do cordelista Lucas Evangelista, escalaram os pés direitos duplos do Centro de Evento do Ceará.
Nesta terça-feira, 18, quem marca presença no espaço das tradições populares é o Mestre Espedito Seleiro, fazedor das sandálias que calçaram de Lampião a modelos de grifes internacionais.
